segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Memórias de Um Amnésico Quase Recifense: Cap II - As Primeiras Vezes (Parte 2)



NARRADOR: E ela se foi, antes mesmo de fecharem o caixão. E eu fiquei ali com os meus demônios, com a culpa que eu, antes, sentia levemente e que, agora, era quase uma regra em minha consciência. Foi estranho ver o caixão ser fechado, ver as feições desesperadas de seus pais, mas a pior parte foi quando o caixão desceu ao túmulo, e quando as pás de terra começaram a serem jogadas. Sete palmos de terra para que o cheiro de sua morte não incomode as pessoas que por ali passem. A vida é estranha... um dia você pode ser a alegria de uma família. No outro, alguém que precisa ser enterrado. Enfim, a última pá de terra. Está tudo acabado. Vou embora com a esperança de que a “Canção da América” esteja certa. Que um dia voltemos a nos encontrar.

NARRADOR: Voltando do funeral, decido me trancar em meu quarto. Decisão que seria inteligentíssima, caso, meia-hora depois, meu irmão, com quem divido um beliche, não chegasse da escola. Estamos numa quinta-feira, 28 de Abril. Vou para a sala, ligo a TV para assistir o noticiário de esportes, e vejo um dos acidentes mais impressionantes que eu já havia presenciado, o de Rubens Barrichello, nos treinos livres para o Grande Prêmio de Ímola.

PAI: Puta merda! Como é que ele sobreviveu?

MÃE: Filho!!!

NARRADOR: Minha mãe, como vocês podem ver, não era muito fã de interjeições exaltadas...

GIOVANNI: E ele sobreviveu?

PAI: Não sei como, mas sobreviveu.

NARRADOR: Esses momentos eu aproveitava como poucos: as possibilidades de conversas com o meu pai em meio de eventos esportivos. Talvez a única coisa sobre a qual eu sabia, ou pelo menos achava que sabia, conversar nessa época.

GIOVANNI: Bicho sortudo.

NARRADOR: Nesse momento pensei como a vida era tragicamente engraçada, uma pancada, jogando bola, e um amigo agora está morto. Uma batida a 300 por hora, trinta e cinco mil capotadas, e o Barrichello está andando e conversando lá na Itália.

PAI: Você já pensou como a vida é?

NARRADOR: E acho que o meu pai também tinha essa sensibilidade...

PAI: Mais de um milhão de dólares num carro desses pra se espatifar todinho numa corrida.

NARRADOR: É... ninguém é perfeito!

GIOVANNI: Vou voltar pro quarto, me chamem quando esse almoço sair!

NARRADOR: O meu quarto é o melhor lugar do mundo para se saber o que ela está fazendo agora. Na verdade, o melhor lugar do mundo é o quarto dela, mas, do meu, era possível ver, pelo menos, a janela de seu quarto. E lá fiquei, até o momento em que ela saiu. Sozinha. Mas eu faria com que isso fosse por pouco tempo...

GIOVANNI: Mainha, painho, tô descendo, daqui a pouco eu volto.

MÃE: Nada disso, vamos almoçar agora!

GIOVANNI: Daqui a pouco eu vou...

MÃE: Você vai me levar uma surra se não vi...

NARRADOR: Poderiam me amarrar num tronco em me dar 500 chibatadas, eu tinha uma missão a cumprir, uma meta a atingir uma...

CAROL: Ai, Serginho... eu tô tão triste...

NARRADOR: Coisa para ver!

SERGINHO: Você pode contar comigo, mocinha. Tô aqui para isso.

NARRADOR: E estava mesmo, Sergio Machado, o marginal loiro da rua, muito mais velho que nós dois, abraçado com ela, fazendo carinho em seu pescoço, alisando seus cabelos, enxugando suas lágrimas. Falando bem baixinho em seu ouvido. Passando a experiência que só quem tem 15 anos é capaz de ter. Uma cena romântica que eu, sinceramente, não merecia apanhar para ver... e por falar em surra.

MÃE: Venha cá seu teimoso, eu não disse que era pra almoçar?

GIOVANNI: Mãe, não fala alto aqui não... por favor!

MÃE: Como é? Você tá me dando ordem? Vou fazer um favor pra você... vou te dar uma surra bem dada pra aprender a me obedecer!!!

NARRADOR: E, antes que eu me esqueça... eu amo a minha mãe!

(continua...)

Nenhum comentário:

Postar um comentário