quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Memórias de Um Amnésico Quase Recifense: Cap I - Tempo de Mudanças (Final)



NARRADOR: E lá se foi ela, chorando. Já eu fiquei ali num turbilhão de pensamentos, com um sentimento de culpa que aumentou infinitamente quando lembrei aquilo que eu havia dito, quando lembrei que, talvez, ele havia me chamado para a última pelada que jogara, que eu não havia participado de sua despedida dos campos, mas fiquei completamente destruído quando olhei para o lado e vi meu irmão chorando, vendo a morte tão de perto, atingindo uma pessoa que vivera tão pouco e já era chamado para o outro lado. Ali eu via, entre outras coisas, o quanto éramos pequenos, o quanto que a morte não escolhe hora, lugar, muito menos pessoa para manifestar o seu poder supremo, o poder de ter todas as pessoas do mundo, em seu momento, em seu lugar. Lugar e momento os quais só ela sabia. Só ela era dona do nosso destino final. Eis que meu irmão se aproxima... lentamente...

LUIGI: Mãozinho, promete que você nunca vai morrer?

GIOVANNI: Eu prometo, Mãozinho... Eu prometo.

NARRADOR: Naquele momento, além de perceber que meu irmão perdera mais que um conhecido, perdera o seu ídolo, o cara que fazia os gols da rua, decidi duas coisas. A primeira é que eu não obedeceria a minha mãe quanto a não jogar mais bola. A segunda, era que eu poderia levar uma surra pelo que eu faria a seguir... eu não estaria nem aí...

GIOVANNI: E aí? Prontos?

TODOS: Prontos!!!

GIOVANNI: Essa é por Matutinho!

TODOS: ISSO!!!

GIOVANNI: Ele gostaria de estar aqui com a gente agora...

NARRADOR: Ali, jogando futebol com os meus vizinhos e amigos, tive a impressão de ter ouvido a voz dele, gritando, pedindo a bola, elogiando uma boa jogada, ou mesmo rindo dos lances bizarros que só nós éramos capazes de realizar. Sim, de uma forma ou de outra, ele estava lá. E nós, estávamos lá por ele. Jogamos até quase meia-noite, mas ninguém reclamou, nem os vizinhos, nem nossos corpos exaustos. Ninguém queria ir embora. Nenhuma mãe chamou o seu para entrar e dormir. Todos, de uma forma ou de outra, sabíamos que ali não estava acontecendo uma simples pelada, estava acontecendo uma homenagem a alguém que partira, muito jovem, cheio de vida. Alguém que não viveria aquilo que nós iríamos viver, alguém que não iria para o 2º Grau, ou mesmo para a faculdade, muito menos formaria uma família. Além de tudo isso, o que acontecia ali era um ritual de passagem. A partir daquele momento, coisas como o amor, o ódio e a morte faziam parte de nossas histórias. A partir dali, já não éramos mais crianças. Éramos a geração que atingiria o ápice da juventude no, antes tão distante, ano 2000. A adolescência, porém, nos chegou de uma forma trágica, com a perda de um querido colega, de um talentoso centroavante. Coube a mim assumir a “Camisa 9” naquele dia, mesmo que, em nossas camisas, não houvesse números. Havia apenas uma mistura de suor e de lágrimas. A propósito, eu levei uma surra, mas não da minha mãe. Lembrem-se, a minha média é de 0,03 gols por partida.

GIOVANNI: Desculpa não ter jogado aquela contigo, amigo! Obrigado por tudo. Fica em paz!

NARRADOR: Hoje, quando me lembro disso, vem à minha mente o fato de que eu, de certo e carinhoso modo, o invejei naquele momento. Ele deixava de fazer dupla de ataque comigo. A partir de agora, teria um companheiro a sua altura... Denner. Por sinal, eu nem lembro porque o chamávamos de Matutinho...


(FIM)

2 comentários:

  1. Muito legal, muito bacana. parabéns.
    Matheus Sukar

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  2. Valeu, Matheus!

    É sempre bom revisitar os nossos bons tempos, os Anos 90 foram os nossos "Anos Incríveis"!

    E vc tá mto bem, a cada dia um melhor repórter!

    De uma forma ou de outra, somos, ambos, pupilos de Vila Nova!

    Abraços!

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