segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Memórias de Um Amnésico Quase Recifense: Cap II - As Primeiras Vezes (Parte 1)

NARRADOR: Não é novidade para ninguém que para tudo na vida há uma primeira vez. O primeiro beijo, a primeira surra, a primeira pipa, o primeiro filho ou mesmo a primeira briga na rua. A verdade é que esses pequenos momentos, inesquecíveis ou não, vão, de certo modo, formando o nosso caráter, a nossa personalidade. Pois bem, eu, Giovanni Fontes, estou aqui, pela primeira vez, na capela de um cemitério, vendo, pela primeira vez, o velório de alguém. Como se não bastasse, é um amigo que está ali, deitado. É o meu primeiro amigo que morre. Não adianta fazer cócegas em seus pés ou colocar algo em seu nariz. Ele não vai reagir, não vai se levantar. Ele está morto. Irredutivelmente morto. É a primeira pessoa morta que vejo em minha vida, seja ao vivo, pela televisão ou em pesadelos. O pior nisso tudo: sinto-me, pela primeira vez, morto por dentro. Crianças não deveriam morrer. Ele era jovem para o rock’n’roll, para morrer, então...

PADRE: A vida nos reserva surpresas. Algumas boas, outras não. Nunca esperamos a morte, muito menos a de alguém tão jovem. Mas Deus sabe a hora certa de chamar os seus filhos para a sua morada...

NARRADOR: Enquanto isso, Pinochet...

PADRE: Fernando agora encontrou-se com o nosso Pai...

GIOVANNI: Não tenho saco pra isso, Van. Vamo sair daqui.

VAN: Que triste, né? Um dia desses jogando bola com a gente, e agora...

GIOVANNI: É...

VAN: Desde quando vocês se conheciam?

GIOVANNI: Não sei bem... nunca parei pra pensar.

NARRADOR: Mas eu parei e pensei... eram cinco anos de uma amizade tranqüila e sem cobranças, de brincadeiras na rua, de incríveis batalhas futebolísticas em nossas ruas esburacadas, fosse no sol forte ou na chuva torrencial. Tudo aquilo acabaria ali...

VAN: Aquela ali não é Carol?

NARRADOR: Não nos víamos desde o momento da notícia da morte de Matutinho, quando estávamos em minha casa, prestes a pedir um ao outro em namoro... eu acho. Eu estava com medo de chegar mais perto, medo de estragar tudo dizendo a coisa errada ou sendo inconveniente. Mas é lógico, eu seria tão burro para fazer algo como...

GIOVANNI: Oi, Carol... acho que temos um assunto para terminar...

NARRADOR: Ser insensível num momento como estes!

CAROL: O quê? Isso é hora de falar sobre isso? Você só pensa em você mesmo! Esquece o que eu te disse ontem! Me esquece também, tá?

NARRADOR: Parabéns!

GIOVANNI: Mas, Carol...

CAROL: Mas Carol, p...

NARRADOR: Acreditem, mesmo num subúrbio do Nordeste brasileiro, palavrões entre meninos e meninas com 12 anos ou menos, em 1994, ainda eram raros!

CAROL: Coisa nenhuma! Além do mais, ele morreu por sua culpa!

NARRADOR: Nesse momento, uma bomba caiu por sobre a minha alma. Todas aquelas pessoas chorando, sofrendo com a perda de uma pessoa jovem e querida, era tudo minha culpa? E Deus? Onde estava nessa história? E... como assim, culpa minha?

GIOVANNI: Como assim, culpa minha?

CAROL: Você disse que queria que ele morresse, lembra? E disse isso bem alto! Quem garante que um anjo não disse “amém” naquele momento em que você falou isso e realizou o seu desejo?

GIOVANNI: Mas...

CAROL: Não quero mais ouvir a sua voz, não quero mais te ver, quero que você morra, também! Entendeu? Eu quero que você morra!

NARRADOR: A lógica adolescente é algo que desafia os mais competentes e geniais filósofos. Os seus tratados de causa e conseqüência ultrapassam a metafísica, chegando a mais pura, absoluta, soberana e suprema...

GIOVANNI: Idiotice.

CAROL: O quê?

GIOVANNI: Isso que você tá me dizendo...

CAROL: O que tem o que eu tô dizendo?

GIOVANNI: É a coisa mais idiota que eu já ouvi alguém dizer até hoje em toda a minha vida!

CAROL: Pois bem! A idiota aqui vai embora, e você nunca, nunca mais se atreva a falar comigo, entendeu?

GIOVANNI: Entendeu! Você não faz falta!

NARRADOR: Hã???

CAROL: Muito menos você, baixinho dentuço!!! Só falta um coelhinho azul e um vestido pra ser a “Mônica”!

NARRADOR: Ei, ela pegou pesado agora!

GIOVANNI: E você, com essa bunda de tanajura???

NARRADOR: O que, para mim era uma das suas maiores virtudes...

CAROL: Eu... eu... eu te odeio!!!

GIOVANNI: É, eu também te odeio!!!

MÃE: Passou pela cabeça de vocês que isso aqui é um velório? Se querem brigar, briguem lá fora!

CAROL: Desculpa, dona Adriana. Eu já to indo embora...

GIOVANNI: É, vá mesmo!

MÃE: Vocês dois, do jeito que brigam, vão acabar se casando.

GIOVANNI: Em seus sonhos, talvez!

NARRADOR: E nos meus também!

CAROL: Tenho que concordar com ele, dona Adriana. De qualquer forma, tenho que ir agora.
(continua...)

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