quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Amor de Mordaça: O Encanto (Fragmento VI)


 
Sim, meu martírio é temporariamente amenizado, mas chego num estado lamentável, vou para a parte mais alta da casa dos meus pais, logo acima do andar onde ficam os quartos, ligo a televisão e vou assistir “Wonder Years”.

A melancolia toma conta de meu ser, viro passageiro daquele que considero como sendo o melhor seriado de todos os tempos. Seriado que, por sinal, me impede de assistir 90% dos que passam hoje em dia, tal como as seleções brasileiras de 70 e 82, e a Laranja Mecânica de 74 impedem muitos de assistirem a 90% das seleções das últimas Copas do Mundo.

Assim como Kevin Arnold, o personagem principal da trama, eu era um suburbano de classe média baixa, relativamente livre dos perigos das cidades e da zona rural, usufruindo, porém, das vantagens de ambos. Não era, no entanto, o caçula da família, mas muito daquele cenário no qual ele vivia refletia minha infância e adolescência, onde eu poderia brincar na rua sem medo, onde eu podia ir à escola sem medo, onde eu podia amar sem medo. Era o tempo da inocência e da liberdade, os anos incríveis que eu tinha a consciência de que não voltariam.

O que me resta desta noite é regado por uma garrafa de uísque e um rio de lágrimas. Lágrimas de desconsolo, de decepção, de sentimento de derrota. Ela já tem alguém, assim suponho, com toda a propriedade que minha visão e inteligência me permitem ter. Sofro numa intensidade assustadora e surpreendente, pois ela se trata de uma branca, com aparência sequelada, que, apesar de ser linda, talvez sequer conseguisse me excitar. Como se não bastasse, tem o mesmo nome de minha ex-mulher.

A questão era bem simples, ela tinha conseguido arrancar lágrimas de mim, uma verdadeira pedra. Há aqueles que me acham sensível, mas minhas lágrimas sempre foram sagradas, nunca me deixei chorar com facilidade, nunca deixei, em hipótese alguma, que me vissem chorar, isso desde a minha infância.

Quebrei as duas pernas e os dois braços quando criança e nunca havia chorado na frente de estranhos e mesmo as dores que não eram físicas foram devidamente engolidas por meu orgulho e pelo meu eterno sentimento de que há males que vêm para o bem. Porém, ali em minha rede, com as idas e vindas de Kevin Arnold e Winnie Cooper, não segurei meu choro, não consegui me convencer de que ali estava um mal que viria para o bem. Eu, ali, me considerei a mais infeliz das criaturas.

Confesso que gostaria que tudo tivesse terminado ali, eu gostaria que esse amor morresse por falta de alimento. Mas caralho!!! O que eu sinto é amor de verdade! Puta que o pariu!!! AMOR DE VERDADE!!! Essa porra não passa.

Mas o que eu estou pensando? Ela é uma mulher linda (estranha, mas linda), que mora num bairro nobre, de classe média alta, que já morou fora do país. O que diabos eu tenho para oferecer a ela? Que atrativos possuo para que ela queira se envolver comigo? Sou feio, de classe média baixa, moro longe e estou, atualmente, desempregado. Pior, não sou Cinderela. Nem a da Disney, nem a do Alto do Pascoal.

Ela é de um mundo diferente do meu e a história da literatura conta o que geralmente acontece quando dois mundos distintos são (ou tentam ser) unidos por um casal: problemas, divergências, intervenções externas, enfim, sempre dá em merda, apesar de renderem belas histórias de amor.

Eis que percebo... É isso! Uma bela história de amor! É exatamente isso que eu tenho a oferecer. Alguém seria capaz de oferecer uma linda história de amor de uma forma melhor do que a minha? Pois bem, é exatamente isso que eu vou lhe dar. Isso se ela, assim, permitir.

Darei a essa moça branca, fria, chorona e estranha o maior amor que um homem pode dar a uma mulher (ou a um outro homem, neste Mundo GLS de Meu Deus!). Sei que só um milagre me faria tê-la em meus braços, mas o milagroso depende de nossos desejos e eu a desejo da forma mais intensa que existe. Não é um desejo idiota como conhecer o futuro, ser imortal, ser apenas prazer perpétuo, ser impassível, incorruptível, ubíquo, ser admirado, adorado ou qualquer merda dessas!

O que desejo é, sem dúvida, um conjunto de impossibilidades ou de improbabilidades. O homem é, sem dúvida, oriundo do desejo, não uma criação da necessidade. Não preciso dela, apenas a desejo. Apenas desejo dar-lhe o maior dos amores, daqueles que não podem ser amordaçados de tão fortes e avassaladores, um amor de verdade, que será eterno em sua, também eterna, duração. Fudeu... enlouqueci!

Dois dias depois volto a encontrá-la na aula e ao fim da mesma, ela me traz a camisa que levara consigo no primeiro encontro. Ela me devolve, de uma forma extremamente fria e vai embora. Se durante esse momento ela diz cinco palavras, é muito.

Momentos antes, ela me explica, pela internet, que ambos (ela e o carinha pegajoso) são só amigos, e que ele estava consolando-a por alguns problemas que haviam ocorrido. Uma verdade do universo: o que nos perturba não são os acontecimentos, mas os juízos que fazemos deles. Não sei o motivo pelo qual ela faz questão de me explicar isso, todavia, inconscientemente, isso me dá uma certa esperança.

Em contraponto a essa esperança, sigo na dicotomia à Kerouac: Esperanza x Tristessa. O fato é que ela está ali, mais gelada do que antes, me entregando a tal camisa. Pior, entregando-a lavada, contrariando o meu pedido. Pedido este que havia sido expresso de uma forma clara enquanto a simbologia romântica da ação, coisa que ela queria, ali, naquele momento, suprimir, ou melhor, trucidar.

A última imagem que tenho dela neste dia é a de uma moça aparentemente (ou fingindo-se) feliz, brincando com malabares. Ou seja, ela não estava fria, estava fria comigo. A última imagem que tenho de mim mesmo é a de um derrotado. “Estar morto é estar entregue aos vivos”. Novamente Sartre me dá uma paulada com o porrete da verdade, pois estou entregue a ela por Eros, estou morto enquanto vontade (ou vontade de potência, se preferirem). É o fim da linha, penso eu.

Depois de chegar em casa, de entrar em meu quarto, percebo que de lá não quero mais sair, e não saio. Por três semanas fico trancado em meu quarto e só saio para me alimentar uma vez por dia e nem todo dia. Estou num estado, definitivamente deplorável. Quase tudo por causa de uma branquela estranha.

A esperança é completamente suprimida e a tristeza torna-se minha inseparável companhia. Se vivemos, no mundo terreno, em uma mescla de tempo e de eternidade e o inferno seria tempo puro, tal como Weil falava, eis que descubro o tal “tempo puro”, o inferno do qual ele se referia.

A depressão me abate, mas faz com que eu escreva uma obra épica, completamente inspirada nela, completamente dedicada a ela. Grandes obras são, geralmente, feitas em momentos de grande tristeza, e eu me tornava vítima de minha própria obra, ou obra daquilo que me vitimou.

Obviamente sou reprovado em todas as disciplinas da faculdade com essa longa ausência, exceto a disciplina de dramaturgia, onde assisto aula com ela e que, por conta dessa obra, eu havia material mais do que suficiente para ser aprovado com sobras. Disciplina que, inclusive, serei obrigado moralmente a freqüentar por dois motivos, nenhum deles, por sinal, acadêmico. O primeiro é, obviamente, chegar mais perto da minha amada, fazer com que a conquista aconteça de verdade. O segundo, já o segundo talvez eu fale mais à frente. Não, pra falar a verdade, eu não vou me pronunciar acerca desse segundo motivo. Ponto Final.
 
(continua...)

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