quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Memórias de Um Amnésico Quase Recifense: Cap I - Tempo de Mudanças (Parte 1)



NARRADOR: 1994, eu tinha 11 anos. Muita coisa importante aconteceu naquele ano. Ayrton Senna morreu tragicamente em Ímola. Nos Estados Unidos, o Brasil foi tetracampeão mundial de futebol. Fernando Henrique Cardoso foi eleito presidente do Brasil. A música baiana começava a poluir os nossos ouvidos e eu estava prestes a passar do primário para o ginásio. Um passo e tanto para quem achava que não sobreviveria o suficiente para ver a as Olimpíadas de Barcelona, em 1992. O fato é que, nos anos anteriores, o Brasil, assim como o resto do mundo, passava por transformações importantes. A não ser nas escolas, nas aulas de história, não se ouvia mais falar em ditadura militar. Definitivamente, a Guerra Fria poderia ser considerada passado e Rocky Balboa não precisava mais lutar contra soviéticos. O “Fora Collor” havia sido um sucesso e a democracia no Brasil começava a amadurecer. Tínhamos uma moeda forte e um tempo de prosperidade se ensaiava aqui e lá fora. O melhor nisso tudo era que eu não estava nem aí pra nada disso. Sejamos sensatos, eu era uma criança, uma criança do subúrbio, uma criança cheia de sonhos e com o seu mundo particular para tomar conta, para descobrir a cada dia, um mundo do tamanho de... uma rua de um bairro do subúrbio da região metropolitana do Recife, Pernambuco. Quer algo maior do que isso? As pessoas acham que os subúrbios possuem as desvantagens das cidades e nenhuma das vantagens do campo, e vice-versa. Eu achava o contrário! Na verdade eu sequer pensava sobre isso e, apesar de todas as questões que fazem parte de ser um suburbano nos anos 90, sei que foram anos maravilhosos em meu bairro, principalmente para mim, para nós, crianças. Bem, este jogando bola sou eu, Giovanni Fontes, 1994. Não tenho modéstia nenhuma em dizer que eu sempre fui um atacante matador.

VAN: Ei, Giovanni, como é que tu perde um gol desses? Põe o pé na forma, miserável!

NARRADOR: È, este é Vânderson Lira, Van, para os mais íntimos. É o meu primeiro e melhor amigo. Temos a mesma idade e acho que nos conhecemos desde a barriga da minha mãe, ele mora no bairro vizinho, ao lado da casa da minha avó. Como eu sou preguiçoso e minha mãe ainda não me deixa pegar ônibus sozinho, hoje ele veio jogar bola com a gente, aqui, em meu bairro.

LUIGI: Hihihihi!!! Bicho Ruim!!!

NARRADOR: Já aquele, na janela do primeiro andar, rindo como uma fora uma hiena recém-nascida é o meu irmão, 4 anos mais novo. Luigi, mas podem chamá-lo de “O Favorito”. Vocês devem imaginar o porquê. Não reparem a diferença da cor de nossas peles, basta olhar para os nossos rostos para perceberem que somos mesmo irmãos. Por mais que convivendo conosco essa impressão fosse para o espaço. Claro que eu tenho a minha própria teoria sobre isso. Mas o fato é que saímos do ventre da mesma mãe, isso sem não antes sairmos do testículo (ele, provavelmente do direito e eu, certamente do esquerdo) do mesmo pai. Enfim, ele recebe todas as regalias de ser o caçula da casa, enquanto eu recebo todas as cobranças por ser o mais velho, o primeiro, o pioneiro. Mas, mudando de assunto...

VAN: Passa a bola, Matutinho, deixa de ser fominha!

GIOVANNI: É, se é pra jogar sozinho não tira o time!

MATUTINHO: Se eu tivesse um time bom, não jogaria sozinho! Além do mais... foi gol!

NARRADOR: Este é Fernando Motta. Mas estamos no subúrbio, quase todos têm um apelido e, para nós, ele se chama Matutinho, o craque da rua. É óbvio que ser dois anos mais velho ajuda muito. Não que Pelé fosse dois anos mais velho do que alguém naquele time de 58, óbvio que o talento ajuda, e é claro, daqui a dois anos estarei jogando igual ou melhor do que ele. Serei do tamanho dele, inclusive. Ele é o filho do senhor que vende água mineral para a maior parte do bairro. Não que os filtros de barro, ou mesmo aqueles que colocamos na torneira não existam nessa época, apenas estão no início de processo de extinção. O seu pai, para ele e, confesso, para mim também, é uma espécie de visionário. Investe num negócio em expansão, por mais que eu ache não vai ter muita gente que vai querer dar 50 centavos por vinte litros de água. O fato é que, como ele ajuda o seu pai no trabalho após a escola, ele ganha uma grana extra e pode fazer a tarefa de casa à noite sem problemas, ao contrário de todos nós.

MÃE: Obrigação, primeiro. Diversão, depois!

NARRADOR: Essa voz do além é a da minha mãe e seus sermões intermináveis. Mas não é hora de falar dela agora, pois o evento principal de cada tarde está se aproximando, com um cabelo rabo-de-cavalo, saia jeans, blusa rosa, sapatos All Star vermelhos, e, o principal, o sorriso mais lindo da face da terra. E lá vem... voltando do reforço escolar... vindo em minha direção. É ela, a musa de 11 em cada 10 pivetes do bairro. A dona da bola. A rainha do milho de nosso eterno São João. A imperatriz de nossas medíocres existências. A suprema, a inigualável, a minha...

CAROL: Oi, Nandjinho... eu tava com saudade de você!

NARRADOR: Nandjinho? Como assim Nandjinho? Ok, o verdadeiro nome de Matutinho é Fernando Motta, mas só os íntimos o chamam de Fernando... Mas, se os íntimos o chamam de Fernando, qual adjetivo se dá para quem o chama de Nandinho? E o que se dirá de quem o chama de Nandjin...

MATUTINHO: Eu também tava com saudade de você, Carol... tá se escondendo de mim é?

NARRADOR: Péra, péra, péra, péra, péra, péra! Desde quando eles têm essa intimidade para falar assim um com o outro? Antes de me explodir em revolta, explico: esta é Carolina Lima, um ano mais velha do que eu, mora no prédio ao lado, senta na cadeira ao lado da minha na classe onde estudamos e é a minha paquera desde a 3ª Série, ou seja, uma eternidade. É a mulher com quem quero viver lado a lado, dormir lado a lado (de ladinho ou não), ou seja, é a mulher que eu quero ao meu lado, ou melhor, junto a mim até o fim de meus dias. Já cansei de trazer os livros dela da escola até aqui, cansei de brincar de esconder, de pega-pega (sem gracinhas, por favor!), de Banco Imobiliário, enfim, compartilhamos parte importante de nossas vidas durante esse tempo todo e ela nunca, absolutamente nunca disse algo que lembrasse, de alguma forma, um “Oi, Giovannizinho... eu tava com saudades de você!”. Não posso deixar isso assim...

GIOVANNI: Oi, Carol!

CAROL: Oi, Giovanni!

GIOVANNI: Vai pra aula amanhã?

CAROL: Talvez.

GIOVANNI: Eu vou!

CAROL: Nos vemos lá então...

GIOVANNI: É, nos vemos, lá!

CAROL: É, nos vemos lá! Xauzinhnandjinho, como eu ia dizendo...

NARRADOR: E lá vai ela, lá vai ele. Nada de dizer que estava com saudade, nem falar comigo num diminutivo carinhoso, um “Djiovannizinho”, por exemplo. Será que nem o fato de eu ser quase dois metros mais baixo do que ele ajuda? Pelo menos ela disse um quase “Xauzinho”. É diminutivo, não é? Droga, como se já não bastasse ser o melhor jogador da rua, ainda tinha que ter, aos seus pés, a menina mais linda daqui também. É justo, tudo isso? Pois bem, talvez essas sejam as vantagens de ser dois anos mais velho nessa época. Ele, ao contrário de mim, já era um homem maduro! Eu, definitivamente, o invejo. Eu o odeio.

VAN: Ei, Giovanni, vai morgar a pelada por causa da pirralha?

GIOVANNI: Não, não, Van... tenho uns gols pra fazer hoje!

NARRADOR: E tinha mesmo, dois pra ser exato, durante a tarde inteira, o que me dá uma média de 0,03 gols por partida.

(Continua...)

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