terça-feira, 30 de novembro de 2010

Memórias de Um Amnésico Quase Recifense: Cap I - Tempo de Mudanças (Parte 2)


NARRADOR: São seis horas da noite, hora de ir para casa. Não que seja perigoso na rua quando anoitece. Ainda estamos no tempo em que podíamos brincar até quase a madrugada e não havia perigo. Afinal, estávamos no subúrbio, longe da agitação e da maldade da cidade. Absolutamente, quando anoitece não fica perigoso na rua. Fica perigoso em minha casa.

GIOVANNI: Oi, Painho!

LUIGI: Oi, Painho!

PAI: Oi...

GIOVANNI: Oi, Mainha!

LUIGI: Oi, Mainha!

MÃE: Oi, Luigi, cadê o xêro de mainha? VOCÊ JÁ FEZ O DEVER DE CASA, GIOVANNI???

GIOVANNI: Ainda não, mainha.

NARRADOR: Essa é a minha mãe, Adriana Fontes. Não é que ela esteja nervosa, ela é nervosa! Talvez tenha até razão, ao invés de ficar em casa cuidando e educando os seus próprios filhos, trabalha em duas escolas, cuidando e educando os filhos dos outros. Obviamente que isso deixa qualquer um nervoso, principalmente quando se trabalha na rede pública de ensino, ou seja, o retrato mais fiel do que será o pós-apocalípse na Terra.

MÃE: Filho... dá um jeito nesse menino! E quando você vai fazer esse maldito dever, hein?

NARRADOR: Não estranhem, eu não tenho um outro irmão. Ela chama meu pai de filho e os filhos ela chama de... chama de Giovanni e Luigi. Afinal, ela os escolheu para isso, não é? Meu pai também tem um nome, Severo, mas não foi ela quem deu, talvez por isso ela não o chame pelo nome...

PAI: Vou tomar banho agora!

GIOVANNI: Daqui a pouco eu faço, mainha, deixa eu assistir o “Mundo de Beackman” e “Anos Incríveis”.

NARRADOR: Eu morria de tesão pela assistente do Beackman.

MÃE: Mas isso é daqui a quanto tempo?

GIOVANNI: Ainda tá passando “Tim-Tim”, daqui a pouco começa...

MÃE: Nem Tim-Tim, nem Tom-Tom, desligue essa televisão ou então você me leva uma pisa!

NARRADOR: Invariavelmente, assim caminhava a maioria dos diálogos divergentes entre eu e a minha mãe. Uma pergunta; uma resposta; uma pergunta acerca da resposta a sua pergunta; uma nova resposta; uma nova pergunta relacionada à resposta anterior; uma resposta levemente atrevida, mas cheia de esperança de ser compreendida e, acima de tudo, aceita como razoável; finalmente, um trocadilho extremamente mal posto, que só ela era capaz de dizer, seguido de uma ameaça de surra ou castigo que, dependendo da minha reação, podia deixar de ser uma mera ameaça para se tornar um fato. Um doloroso fato.

GIOVANNI: Só vou fazer depois de assistir “Anos Incríveis”!

MÃE: Você está me desafiando, Giovanni Fontes?

GIOVANNI: Não, mainha, mas eu só vou fazer o dever de casa depois de assistir “Anos Incríveis”!

MÃE: Pois bem, você agora vai assistir “Cinturãozadas Incríveis”!!!

GIOVANNI: Não mainha! Não Mainha! Nãããããoooo...

NARRADOR: É... eu disse que ficava perigoso em minha casa depois das seis. Eu não sabia se eu a odiava mais pelas surras ou pelos trocadilhos ridículos, mas o fato é que eu, realmente, rezava para que ela só chegasse em casa completamente exausta e, é claro, depois de eu estar dormindo. Ainda bem que do prédio ao lado não dá para ouvir os meus gritos...

(continua)

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